quinta-feira, março 22, 2007

As rosas de Atacama


" 'Um morto é um escândalo, mil mortos são uma estatística' afirmou Goebbels, e o mesmo repetiram e repetem os militares chilenos ou argentinos e seus cúmplices disfarçados de democratas. O mesmo repetiram e repetem os Milosevic, Mladic e seus cúmplices disfarçados de negociadores de paz. O mesmo no-lo cospem os autores de massacres na Argélia, tão perto da Europa.

Bergen Belsen não é certamente um lugar para passear, porque o peso da infâmia oprime, e à angústia do 'e que posso eu fazer para que isto não volte a repetir-se?' segue-se o desejo de conhecer e contar a história de cada uma das vítimas, de nos agarrarmos à palavra como único esconjuro contra o esquecimento, de contar, de nomear os factos gloriosos ou insignificantes dos nossos pais, amores, filhos, vizinhos, amigos, de fazer da vida um método de resistência contra o olvido, porque, como notou Guimarães Rosa, narrar é resistir.

Numa extremidade do campo e muito próximo do lugar onde se erguiam os infames fornos crematórios, na superfície áspera de uma pedra, alguém (quem?) gravou, talvez com o auxílio de uma faca ou de um prego, o mais dramático dos apelos: 'Eu estive aqui e ninguém contará a minha história'.

(...) Suponho que terei lido uns mil livros, mas nunca um texto me pareceu tão duro, tão enigmático, tão belo e ao mesmo tempo tão dilacerante como aquele, escrito sobre uma pedra.

'Eu estive aqui e ninguém contará a minha história' escreveu alguém (quando? uma mulher? um homem?) pensando na sua saga pessoal única e irrepetível, ou talvez em nome de todos aqueles que não aparecem nos noticiários, que não têm biografias, mas apenas uma esquecediça passagem pelas ruas da vida"


Luis Sepúlveda em As Rosas de Atacama

Sem comentários: